Natural de Porto Velho, Rui de Carvalho mora há 48 anos no Rio de Janeiro
Muito
compositor já se arvorou a cantar a Amazônia. Muito artista plástico já ousou
pintar a Amazônia. Agora, fazer as duas coisas ao mesmo tempo é uma tarefa
quase impossível. Eu e você, leitor, temos o direito de pensar assim, mas só
até o dia em que conhecer Rui de Carvalho, um ‘índio’ da Amazônia radicado há
40 anos no Rio de Janeiro.
Seu
último projeto traduz o que estão afirmando. Rui pintou 10 telas das lendas
amazônicas e compôs uma canção para cada uma delas. O resultado desse trabalho
vem sendo apresentado em várias escolas do Rio de Janeiro, entre elas as
escolas públicas agraciadas pelo Serviço Social do Comércio (Sesc). Geralmente
escolas de periferia do Rio de Janeiro.
As crianças arregalam os olhos quando Rui entra no palco levando material que amigos lhe mandam da Amazônia – cocares, zarabatanas, arcos e flechas, pulseiras, colares e instrumentos de percussão. A ‘curuminzada’ arregala ainda mais os olhos quando a narradora das lendas, a professora de literatura e contadora de histórias Sílvia Ferraz, entra em cena e começa a contar: ‘Dizem, foi Mapinguari, um mistério horripilante, lá no alto do Purus, quem tem um olho é o gigante’, entre outras lendas.
Lenda
contada, Rui retorna à cena para explicar os seres mitológicos retratados em acrílica
sobre telas, pintadas com sua espátula epinceis, em doses vibrantes de tons que
remetem à Amazônia. A partir daí, o artista plástico sai de cena e incorpora o
compositor que, ao violão, vai desfilando as canções compostas exclusivamente
para cada uma dessas histórias: Yara mãe d´água, o Boto, Curupira, Sapo Aru,
Cobra Grande, Mapinguari, Matinta-Pereira.
“Com esse
projeto das lendas amazônicas, apresento as histórias contadas por minha mãe,
que fizeram parte da minha infância e adolescência e que continuam vivas até
hoje, mesmo morando no Rio há mais de 48 anos. Vou continuar levando a Amazônia
comigo aonde eu for. Quero ser o embaixador da Amazônia no Rio”, explica Rui de
Carvalho, que nasceu em Porto Velho, veio para Manaus aos 12 anos e se
transferiu para o Rio aos 18.
Muitas
luas se passaram, mas Rui continua cantando e pintando a Amazônia.
Foi chefe do departamento de design do ‘Jornal do Brasil’, atuando numa redação histórica onde cresceu convivendo com Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Saldanha, José Carlos de Oliveira, Ziraldo, Chico Caruso, Castelo Branco, Zózimo Barroso do Amaral, para citar apenas alguns nomes que fizeram do JB o maior jornal do país.
Em 1982,
gravou o LP Enfieira, que mostrou ao Rio de Janeiro o sangue verde da Floresta
Amazônica que Rui trazia nas veias. “A simplicidade com que compõe, canta e
vice-versa, nesse disco, mostra que Rui de Carvalho é um ‘Chansonnier’. Rui é,
na verdade, um poeta urbano dos bons”, escreveu o cartunista Chico Caruso, de
‘O Globo’. Naquele ano, ‘Enfieira’ ficou entre os dez melhores discos do ano, na
lista do crítico musical José Domingos Raffaelli do JB. Indicado como um dos melhores LPs daquele ano
pela Associação dos Produtores de Discos Independentes, bandeira erguida por
compositores como Chico Mário (irmão do Henfil), Antônio Adolfo, Danilo Caymmi
e a dupla Luli e Lucinda, depois convidado a fazer parte da diretoria da
associação.
“Inventar
falsos astros e estrelas da canção e deixar num ostracismo absurdo cantores e
compositores rigorosamente categóricos, como Rui de Carvalho, é desperdiçar
dinheiro. Enfieira é um trabalho genial de Rui de Carvalho”, escreveu Tuninho,
no ‘Jornal da Tarde de São Paulo’.
Nos dias
27 e 28 de dezembro de 2002, numa iniciativa do jornalista Alfredo Herkenhoff e
do músico Renato Piau, o CD “O Tom do Leblon” foi lançado no Bar do Tom –
Plataforma, com ampla cobertura de “O Globo” e “Jornal do Brasil”. Rui de
Carvalho estava lá, participando do CD com a música ‘De Bar em Bar’ (homenagem
a Jaguar), que ganhou completamente o público no show do Plataforma, sendo uma
das mais aplaudidas.
Em 2008,
o compositor volta a surpreender. Lança o CD ‘Noel Rosa por Rui de Carvalho’,
que recebeu o seguinte comentário de Fernando Bicudo: ‘Rui, já ouvi ‘Palpite
Infeliz’, ‘Gago Apaixonado’ e ‘Com que Roupa’, sensacionais, não apenas o
violão e os arranjos, mas a tua interpretação. Voz redonda, timbrada, agradável
de se ouvir, daquelas que cativa e podemos ouvir a noite inteira, sem cansar os
ouvidos. Parabéns, de verdade”.
Em 2013,
Rui lança seu CD, ‘Águas do Brasil’. O álbum, que vem acompanhado de um livro e
ainda pode ser adquirido diretamente com o artista por meio do e-mail
ruidecarvalho2@gmail.com. eM 2016 lança
o CD !Santo e Profano". Todos CDs estão à venda em lojas virtuais de todo
o mundo. Outras informações na internet sobre trabalhos de design, música e
artes plásticas. Rui também está no
Dicionário da Música Brasileira de Cravo Albin
Conheço o
Rui de “conversas de botequim” e de parcerias memoráveis na música e na vida.
Dono de um talento do tamanho das águas do Madeira e Rio Negro – onde bebeu da
fonte –, Rui é capaz de reencarnar um boêmio carioca ao mesmo tempo em que se
transforma em Curupira e galopa pela Floresta Amazônica, defendendo árvores,
rios e bichos. Ouvi o CD do Noel e sei do potencial desse artista que coloca a
alma, os olhos de peixe e o mormaço da floresta em tudo que faz. Até hoje não
entendi por que seu primeiro disco ‘Enfieira’, que repito como um dos mais
sofisticados discos que ouvi na vida, não tenha estourado no ‘sul maravilha’.
Prova de que, hoje, para fazer sucesso precisa-se de muito mais que talento. O
que Rui tem de sobra.
Mário Adolfo é Jornalista,
escritor, ilustrador e cartunista com vários prêmios em sua brilhante carreira
e dois prêmios Esso de Jornalismo.
Matéria
transcrita do jornalista Mario Adolfo - Jornal Amazonas Em Tempo - Dezembro de
2016 em Manaus.