quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

As dez medidas contra a corrupção

Gisele Farinhas


 

 
 
 
 
- A primeira proposta de lei de iniciativa popular na Carta Magna de 1988 -

Recentemente, muito se festejou sobre a campanha do Ministério Público Federal acerca das dez medidas contra a corrupção que apresentou proposta subscrita por mais de dois milhões de eleitores brasileiros. Como o próprio nome já nos faz concluir, as mesmas pretendiam erradicar ou ao menos reduzir os atos corruptivos dos agentes públicos que, infelizmente, viraram corriqueiros nos noticiários do país. Em um contexto democrático brasileiro atual, no qual nos deparamos com uma profunda reformulação dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), a crise financeira e das lideranças representativas, a proposta veio a calhar.

E o que, de fato, referida proposta prevê? Vale saber...

1.                  implantação de políticas públicas de informação e prevenção da corrupção com destinação de verbas para que houvesse conscientização social dos danos acometidos por essa prática ao país;

2.                  tipificação do crime de enriquecimento ilícito aos agentes públicos que apresentarem acervo patrimonial dissonante à sua renda comprovada;

3.                  aumento de pena para crimes de corrupção de valores vultosos, bem como a sua equiparação a crimes hediondos, afastando assim a prescrição;

4.                  propostas mais de onze alterações legislativas no Código de Processo Penal e uma emenda constitucional para que haja mais celeridade quando do julgamento dos recursos que envolvem “crimes de colarinho branco”, dentre essas mudanças, encontramos a possibilidade de execução imediata da condenação quando constatado o abuso do direito de recorrer pelo juízo, a revogação dos embargos infringentes ou de nulidade, a extinção da figura do revisor e dos embargos de declaração em face de decisão em sede de embargos de declaração, a simultaneidade do julgamento dos recursos especiais e dos recursos extraordinários, novas regras para o habeas corpus, a execução provisória da condenação proferida por Tribunal de Apelação, que é uma prática adotada em diversos países;

5.                  previsão de mecanismos diversos de celeridade na tramitação de ações de improbidade administrativa, como por exemplo, a adoção de defesa inicial única e a criação de varas, câmaras e turmas especializadas;

6.                  reforma do sistema prescricional penal buscando evitar a impunidade;

7.                  alterações quanto as nulidades penais previstas;

8.                  responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa dois;

9.                  previsão de prisão preventiva para evitar a dissipação do dinheiro desviado;

10.              recuperação do lucro derivado do crime através do confisco alargado – permitindo-se o confisco da diferença entre os valores declarados e os valores de origem ilícita, bem como pela ação civil de extinção de domínio que possibilitaria à justiça federal a declaração da perda de domínio dos bens, independente da responsabilização do autor do ato infracional.

De acordo com o processo legislativo brasileiro vigente, o referido projeto de lei n.4850/16 seguiu para votação plenária na Câmara apresentando esta a emenda de plenário n.4, acessória ao referido projeto. Vale esclarecer, por pertinente, que das dez medidas originárias, apenas três foram preservadas enquanto que sete foram inseridas versando sobre os mais diversos pontos e temáticas. Com isso, parlamentar, com mandato em exercício, aduziu, perante o Supremo Tribunal Federal, medida cautelar de urgência em sede de mandado de segurança asseverando a multiplicidade de vícios procedimentais formais e materiais. Isto porque, referido projeto de lei, deveria ser apresentado como proposta de iniciativa popular e não de iniciativa  parlamentar. Esse pequeno detalhe muda tudo, vez que no regimento interno da câmara dos deputados há previsão de rito próprio para a apreciação de propostas de iniciativa popular, exercício soberano do povo, segundo o qual a votação deve ser feita por Comissão Geral e com a presença de orador específico para defendê-las. Ademais, houve uma profunda transfiguração temática entre a proposta original e as emendas insertas pelo plenário.

Assim, em decisão liminar, no mandado de segurança n. 34.530, houve a suspensão dos efeitos dos atos praticados no bojo do processo legislativo do projeto de lei 4850/16, determinando-se, consequentemente, a suspensão da tramitação do projeto de lei da câmara n.80/2016 perante o senado federal e o seu retorno à casa de origem para que seja autuado o projeto de lei n. 4850/16 como de inciativa popular, devendo-se adotar rito procedimental próprio nos termos do regimento interno da casa; sustando-se, além disso, todos os atos do poder legislativo, pretéritos e supervenientes, em contrariedade à referida decisão.

Desta feita, a pergunta que se coloca é? Poderia o poder judiciário adentrar no processo legislativo interna corporis (regimental)? É importante esclarecer que os atos interna corporis são aqueles que advém, tão somente, de questões regimentais como a interpretação, aplicação, desvios ou até atos diretivos. Em regra, para a doutrina majoritária dos administrativistas, no qual me filio, os atos interna corporis, assim como os atos exclusivamente políticos são insuscetíveis de controle pelo judiciário (judicial review). Contudo, excepcionalmente, pode haver controle judicial dos atos interna corporis que envolverem controvérsia jurídico-constitucional, ou seja, quando violarem a Constituição.

Ao meu ver, a decisão liminar prolatada, pelo ministro Luiz Fux, fora assertiva, vez que por previsão do art. 14, III, da CRFB, a iniciativa popular decorre, por excelência, do exercício da soberania do povo, abalizada pelo princípio constitucional do devido processo legal e regulamentada pelos art. 13 e 14 da lei 9709/98, razão pela qual a transfiguração da lei de iniciativa popular em parlamentar viola a Constituição que assim a prevê expressamente.  Logo, cuida-se de exceção à vedação da não intervenção judicial aos atos interna corporis, já que desembocam em controvérsia jurídico-constitucional. Sem dúvidas, houve um erro procedimental quanto ao rito a ser adotado para a votação na Câmara de referida proposta. Se haverá aprovação ou rejeição isso é algo que competirá, exclusivamente, ao Congresso Nacional. Vejam que não houve manifestação do judiciário sobre esse ponto, mas sim quanto ao regular procedimento a ser adotado. Não há que se falar então em usurpação de poderes ou violação à autonomia parlamentar prevista no Pacto de São José da Costa Rica, tampouco em mudança de jurisprudência da Corte constitucional, mas sim de hipótese excepcional que autoriza o controle judicial do legislativo.
Giselle Farinhas é advogada